Narrador póstumo em: Machado de Assis e Mia Couto


INTRODUÇÃO
            Pretendemos fazer uma análise comprativa das obras: Memória Póstuma de Bras Cubas (MPDBC) de Machado de Assis (M. De Assis) e A Varanda do Frangipani (AVDF)de Mia Couto (MC).Será com essas abreviações que iremos tratar as duas obras ao longo do trabalho. Iremos debruçar sobre os aspectos ou elos de aproximação ou distanciamento de ponto de vista do narrador póstumo entre as duas obras.

Narrador póstumo em: Machado de Assis e Mia Couto

            Narrador póstumo, termo que adecua ao fenómeno das duas obras em análise trás nos diferentes universos de diferentes formas. Compreende-se por narrativa póstuma o relato de uma história contada por uma voz postmortem (depois da morte) que, livre da prisão do antigo corpo, pode se concentrar na sua própria consciência. (BEZERRA 2012) Então narrador póstumo seria uma consciência cuja ligação com o respectivo corpo humano está desconectada. Em forma duma análise crítico-interpretativa: O romance de Mia Couto é narrado pelo carpinteiro Ermelindo Mucanga, que morreu nas vésperas da independência, quando trabalhava nas obras de restauro da Fortalezade São Nicolau, onde atualmente (no universo temporal da historia) funciona um asilo para velhos. Esse personagem é o que os nativos chamamde “xipoco”, um fantasma que vive numa cova sob a árvore de frangipani, na varanda da fortaleza. querem transformar Mucanga em herói nacional, mas ele não concorda: “Certo era que eu não tinha apetência para herói póstumo. A condecoração devia ser evitada, custasse os olhos e a cara.” (MC, p. 12). Para tanto,seria necessário que ele “remorresse”. Este é o narrador que se apresenta como não pertecendo ao mundo da narrativa que vai narrar: “era a primeira vez que ele iria sair da morte. Por estreada vez iria escutar, sem o filtro da terra, as humanas vozes do asilo” (MC. p.18) é no depoimento deste narrador que a ideia de narrador não humano nos fica, a ideia de ser um narrador póstumo pois este se manifesta como não pertecente ao universo diegético da história por ele narrada: “nunca fui homem de ideias mas não sou masto de enrolar a língua” essa é a justificativa deste narrador incomum, justificativa de estar a desempenhar um papel não comum daqueles que já não pertencem o mundo dos que vivem. Os capítulos do livro em que o póstumo narrador toma a palavra estão sequêncialmente titulados: “estreia nos viventes”; “segundo dia nos viventes” e assim vai continuando a numeração lógica até o fim.
Já o Brás Cubas, narrador de Machado de Assis, narra os factos que constituiram a sua existencia com destaque para: a infânçia; caso amoroso com Marcela; a viagem de estudos na Europa; romance adúlterro com Virgília (mulher do político Lobo Neves); o encontro com Quincas Borba e a filosofia de humanitismo; a criação de emplásto (remédio que curraria todos males) e finalmente a morte. Portanto são memórias que este narrador póstumo narra e a grande abertura em forma de prólogo: “Ao Verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosas lembranças estas memórias póstumas” narrado por um “defunto-autor”, direcionado ao leitor em tom sarcástico. O personagem Brás Cubas, que não tem nenhum tipo de compromisso com os valores do mundo, mostrou no romance o que verdadeiramente pensa sobre as pessoas, já que não pertencia mais àquele mundo, não precisava mais delas. Este narrador personagem, Brás Cubas comenta sobre os seus pensamentos, além de criticar a sociedade do Rio de Janeiro da época e tudo que há nela: a escravidão, a divisão das classes sociais, com indiferença, ironia e pessimismo. "Neste romance de Machado de Assis, autêntica obra-prima pela finura psicológica, pela serena inteligência das coisas e pela justeza da expressão, ora travessa, irônica, maliciosa, ora de concisa gravidade, o narrador fictício, Brás Cubas, evoca e repensa de além-túmulo, sem ilusões nem respeitos terrenos, a vida conclusa existência oca decelibatário rico." Jacinto do Prado Coelho.
O que aconte no romance de Mia Couto é diferente, uma vez que não é uma narrativa de memórias que o narrador fantasma nos narra este apenas se apossa do corpo do policial Izidine Naíta para investigar um crime que movimenta a narrativa, ou seja, a trama ou intriga do livro.
Em A Varanda do Frangipani, sabemos desde o início quem é o possuidor e o possuído ou como indica o narrador, hospedeiro e hospedado. Hermelindo ocupa uma parte da alma de Izidine, ou, dito de outra forma, Hermelindo toma apodera se do espaço da alma do agente, silencia-a e fica no comando do corpo, por vezes tem acesso às memória do agente: “vai com ele, vai nele, vai ele. Fala com quem ele fala. Deseja quem ele deseja. Sonha quem ele sonha” Entretanto, durante a narrativa, o narrador fantasma rememora somente, a não ser no início do romance em que cita passagens de seu período vivente. Além disso, a história é entrecortada por depoimentos dos velhos e das testemunhas, que habitam o asilo onde ocorreu o crime que Izidine investiga, estes velhos que se transformam em narradores daquilo que num lapso de tempo relativamente breve lhes sucedeu, eles vão contando estórias num plano ou foco diferente daquele que o narrador (encarnado no agente Izidine) vem contando, até porque no depoimento de cada velho tem um capitulo que antecede outro que torna nos de volta ao universo presente, universo de asilo, universo que rodeia o agente Izidime.
Em Machado de Assis, estamos perante uma narração ulterior (o narrador é colocado num universo diegético que os eventos que nos narra já conhece na totalidade) “Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns anos depois? A mesma; era justamente a senhora, que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias”. (P 98) por tanto estamos perante um narrador que apenas repete a sua vida, em forma de lembrança, relato das suas próprias memórias, nenhum evento presente acontece para além da sepultura onde o corpo jaz enquanto o espirito se diverte narrando o passado daquele que jaz. Não há dúvida de que, de ponto de vista do leitor, o fim do Brás Cubas será aquele que nos é narrada logo no início do livro, apenas lemos a obra para saber do seu passado e o que sucedera aquele fim fúnebre. Todos os eventos narrados, em Machado de Assis, estão no passado.
Em contrapartida este mesmo leitor não irá interpretar o mesmo ao ler AVDF onde, para além de contar eventos que acontecem no presente por um narrador morto (Ermelindo Mucanga) que, no canto dum dos personagens, nos narra a história dos viventes, entre viventes. Há uma segunda morte que o leitor desconhece uma vez que é de outrem e não do mesmo póstumo-narrador, apesar de se saber através do mesmo narrador (diferente de Brás Cubas que já no caixão, inicia a sua memórias) que essa morte aconteceria em seis dias. É no presente que os eventos importantes acontecem não no passado como em MPDBC.

Estatuto do narrador
O outro elo de distanciamento entre esses dois livros é o estatuto do narrador, em quanto em AVDF, é homodiegético, o narrador “Xipoco” veicula informações advindas da sua experiencia diegética tendo vivido a história mas que depois retirou se para de longe contar sem dela participar, apesar de, em AVDF, haver um vai e vem desse narrador o que pode confundir o leitor levando o ao mau ponto de que o narrador é o agente Izidine, personagem pela qual o narrador “Xipoco” encarnou para remorrer, desta maneira, boa parte da história que fica aqui contada é do agente e não do narrador póstumo, até porque este não tem memórias do seu passado, salvo aqueles momentos que as vivencias do agente lhe trazem algumas memórias soltas relacionadas com aquele momento que o agente estava passando: “Na cova eu não tinha acesso à memoria. Perdera a capacidade de sonhar. Agora, alojado num vivente…” (Mia Couto, p 120).
Em MPDBC temos um narrador Autodiegético uma vez que este depois de morto, o Brás Cubas agora um defunto, decide narrar a história e reviver (a ideia de reviver aqui vem para mostrar o oposto de remorrer em AVDF) os pontos mais importantes da sua vida, por tanto, o narrador Autodiegético geralmente relata as suas própria experiencias como personagem central da mesma história, o ponto de vista do narrador passa pela personagem principal, Esse narrador possui particularidades que irão dominar a narrativa, essa é situação em MPDBC, todos os eventos narrados aconteceram no passado e o mesmo narrador, ou seja, narrador-personagem póstumo, está presente entre os eventos narrados, os eventos que ele nos narra giram em torno dele, eventos pelos quais, para além de fazer parte, também desempenha acções. Brás Cubas, narrador e personagem principal da sua história, que é constituído de flagelos e delícias, de glória e miséria, de desejos e frustrações. Serão esses estados antagônicos que caracterizarão o narrador-personagem ao longo do romance.
Em contra partida em AVDF temos o narrador que, do canto do corpo do agente Izidine, nos narra eventos que em volta do agente ocorrem sem desempenhar nenhuma acção palpável no universo narrativo dos viventes o que o torna Homodiegético: “Izidime tinha um plano: entrevistraia em cada noite, um dos velhos sobreviventes. De dia procederia a investigação no terreno. Depois de jantar, se sentaria junto à fogueira e escutaria o testemunho de cada um. Na manhã seguinte...” (MC p.25) uma vez encarnado no agente o narrador sabe tudo sobre o agente, já no universo sepulcral, este narrador pode assumir o estatuto Autodiegético, uma vez que tem o pangolim ao seu lado: “O que queria lembrar, muito-muito, eram as mulheres que amei, confessei esse desejo ao pangolim.” (MC 19) Considerando que o sonho deste morto é que suscita um enorme enredo e não temos no universo real aquele leque de personagens que habitam o asilo, ou se houverem acções que desempenharem não são reais então estaríamos perante um narrador Autodiegético uma vez que este dialoga com o pangolim no além e foi a partir do dialogo entre o morto e o pangolim que surgiu a intriga entre os vivos no asilo, e a necessidade de este mesmo morto integrasse entre os vivos para resolver o enigma e partilhar a intriga.

Narrador narratário
A relação entre o Narrador e narratário é tratada de difententes maneiras nas duas obras, o narrador do Machado de Assis é explícito: “Vamos de um salto a 1822, data da nossa independência política, e do meu primeiro cativeiro pessoal.” (M. de Assis P. 72) o Vamos que está no plural, mostra que este narrador tem ateção de que no seu percurso narrativa não está sozinho, tem o narratário acompanhando os seus passos. Este narrador, as vezes faz nos suger ao leitor que volte aos capítulos anteriores facto que não temos em AVDF, não que alguns capítulos não sugiram ao narratário que volte aos capítulos anteriores mas que, não é pela sugestão do narrador é pelo próprio prazer ou nessecidade de perceber o ponto narrativo que este estiver, desse leitor que estiver lendo. Este narrador não sugere como o de Machado de Assis sugere “Não era esta certamente a Marcela de 1822; mas a beleza de outro tempo…” p. 112 não se cansa de nos alertar sempre que um capítulo necessita de subsídios doutros capítulos para perceber o conteúdo geral daquele que estivermos lendo (o longo intevalo entre as páginas dos dois trechos acima citados mostram o ponto que o narratário estava e para onde devia voltar), mesmo quando é algo que este disse noutro mas que quer, por qualquer relação que esses capítulos possam ter, repetir a mesma coisa que dissera naquele “Ocorre-me uma reflexão imoral, que é ao mesmo tempo uma correção de estilo. Cuido haver dito, no capítulo XIV, que Marcela morria de amores pelo Xavier.” P. 77-78 talvez isso justifique o facto de alguns capítulos de Machado de Assis (Brás Cubas) serem curtos, apesar do número elevado dos mesmos. O facto de em alguns capítulos evocarem outros, fazendo uma comunicação entre os mesmos de modo que, para além de economizar o tempo e papel, manter a coerência do próprio enredo fixo e objectivo num só ponto que não pode ter outro fim se não a morte do narrador-personagem (o que o transforma em Narrador póstumo) portanto este narrador tem uma comunicação constante com o seu narratário: este destinatário intratextual do discurso narrativo da história narrada explicitamente “Talvez espante ao leitor a franqueza com que lhe exponho e realço a minha mediocridade; advirta que a franqueza é a primeira virtude de um defunto.” (P. 93) é como se o narrador estivesse diante do seu leitor ou que aquele tem certeza absoluta que a história irá parar nas mãos de qualquer um e imaginasse-lhe o estatuto social, psicológico do mesmo, como se adivinhasse o humor do leitor. “Já meditaste alguma vez no destino do nariz, amado leitor?” P. 124. É essa relação intimista e explícita que o narrador póstumo tem com o narratário (entidade fictícia, um «ser de papel» com existência puramente textual, dependendo por outro «ser de papel») e faz com que este, de vez em quando se lembre de que não está só, o narrador está sempre ali e faz questão de chamá-lo sempre ao longo do texto.
Na obra de Mia Couto não há menor menção do narratário, nesta, como em inúmeras obras o narratário é, com frequência, um sujeito não explicitamente mencionado o que o torna narratário implícito. “Consultei ao pangolim, meu animal de estimação. Há alguém que desconheça os poderes deste bicho de escamas, o nosso halakavuma.” (Mia Couto, p.15) em confronto com o narratário não mencionado ou implicitamente mencionado, o leitor coloca-se numa posição complicada se não conhecer, neste caso, o significado do termo Halakavuma. Pode ficar aquém dos conhecimentos atribuídos ao narratário, salvo se se tratar de um leitor local, um leitor que pertence ao espaço impírico representado na diegese, onde se desenrola a narrativa.
Já o narrador do Machado pode ser perceptível em qualquer canto de mundo, qualquer leitor do mundo sente se envolvido com o narrador Machadiano, é como se este estivesse no papel: “…Porque o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...” (Machado de Assis, P. 155) a mesma sessação é sentida no livro de Mia Couto, os velhos de asilo contavam uma séria de estórias que apesar de serem coerente ao desfecho das mesmas, só diziam o que agente Izidime não queria saber, o que era a sua pesquisa, só no fim quando até o leitor, embalado nas histórias fantásticas dos mesmos velhos, se esquece da intriga e o foco do depoimento (A morte de director de asilo) transmitindo dessa maneira informações que estão além do objectivo do agente e o leitor acaba ficando a par dessas informações que os velhos facultam, levando mais tempo para o ponto culminante da narrativa (achar o assassino do director de Asilo).
O narrador de Machado de Assis nega ser uma história romântica a que conta “Não digo que já lhe coubesse a primazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque isto não é romance, em que o autor sobredoura a realidade e fecha os olhos às sardas e espinhas; mas também não digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sarda ou espinha, não.” P 98 e desta maneira cabe ao leitor, aceitar ou negar se, de acordo com o conteúdo que está ao longo da diegese é ou não característico ao romanesco, mesmo que o próprio Brás Cubas diga de antemão não tratar se de uma história romanesca e ainda acrescenta “Não se irrite o leitor com esta confissão. Eu bem sei que, para titilar-lhe os nervos da fantasia, devia padecer um grande desespero, derramar algumas lágrimas, e não almoçar. Seria romanesco; mas não seria biográfico. A realidade pura é que…” P. 204 mais uma vez caberá ao leitor, uma vez que este é o elo importante nessa categoria de atribuir sentidos aos textos.


CONCLUSÃO
            Concluímos que as obra de Mia Couto e Machado de assis tem um narrador póstumo nas suas obras que se manifesta de diferentes maneiras em quanto em M. De Assis o narrador é Autodiegético em MC o narrador varia de Auto a Homodiegético, o que permitiu que algumas diferenças e semelhanças tornaram a obra do mesmo autor similar em alguns aspectos mesmo sendo poucas. Apesar de o narrador ser da mesma origem, póstumo, nas duas obras, tem rumos diferentes uma vez que um narra eventos do passado e o outro narra eventos do presente cujo futuro apesar de traçado não termina como os leitores esperavam. A relação narradodor narratário é explícita na obra de M. De Assis e em MC, implícita.


BIBLIÓGRAFIA
ASSIS, Machade de. Memórias Póstuma de Brás Cubas. 1ª Edição. Lisboa, Universitária editora, 1997
BEZERRA, Paulo. O Universo de Bobók. DOSTOIÉVSKI, Fiodor. Bobók. São Paulo, Editora
34, 2012.
COUTO, Mia. A Varanda do Frangipani, 1ª edição. Maputo: Ndjira, 1996.
REIS, Carlos e LOPES, A,C,M. Dicionário da Narratologia. 7ª Edição. Porto, Almedina,2000
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica (Debates, 98). Trad. Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 1975.


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