O último voo de Flamingo: de texto literário ao fílmico
Publicada por literatura sem fronteira à(s) 03:01
Introdução
O presente ensaio trará elementos estruturais que sustentam a transposição do texto literário ao texto fílmico. Vários materiais serão usados para a composição deste ensaio para além do corpus: O Último Voo de Flamingo de Mia Couto e filme com o mesmo título, de João Ribeiro. Após um árduo e cansativo trabalho de campo (se me permite o termo) que suscitou a satisfatórios dados, para alem de algumas obras que tratam de cinema e literatura. É em torno dessa vicissitudes que o presente ensaio irá se basear, desde a descrição dos espaços, acções até dos personagens: elementos chaves da estrutura narrativa. De salientar que, em algumas vezes, durante o trabalho, trataremos o João Ribeiro por J.R, Mia Couto por MC e o título do Livro e filme por OUVDF

De texto literário ao fílmico
O Último Voo de Flamingo: Da estrutura literária à estrutura Fílmica
“O texto fílmico se aproxima dos vários gêneros manifestados no texto
literário, (…) são essencialmente as personagens que veiculam os
discursos, como acontece no texto dramático.” As construções das obras
de Mia Couto são geralmente intercaladas (uma das obras do mesmo autor
com a mesma característica narrativa: A Varanda de frangipani) e dessa
maneira, facilita o uso das personagens para construir as diversas
narrativas cujos narradores são os próprios personagens, é como se
emprestassem um momento do narrador geral da narrativa (o narrador do
livro todo) geralmente, essas narrativas, enaltecem a narrativa mãe uma
vez que os assuntos narrados pelos personagens, fornecem dados ou
vestígios para a resolução do conflito da obra. Na obra de Mia Couto: O
Último Voo de Flamingo, no capítulo sexto é silenciado o narrador da
narrativa mãe para dar voz a um personagem do texto “Começou-se tudo na
madrugada antepassada. Minha esposa, Dona Ermelinda, veio à janela e
perguntou que barulho era aquele (…). Eu, Estêvão Jonas: praguejei. Ela
que não se metesse. (…). Quem sabe um dia, de tão quente, também eu
expludo no meio da noite” OUVDF
p. 75-76 eis o exemplo textual a partir da obra de Mia Couto onde o
personagem que, para alem de nos narrar o conflito que faz a narrativa
mãe ou plot principal, narra assuntos pessoais, (onde no filme
mereceria um flash-back uma vez que temos, no interior ou estrutura
dessa narrativa, personagens, descrição de espaço até de tempo como
está evidente no trecho acima citado, por razões de economia temporal
não encontramos no texto fílmico). Uma parte do conflito tratado no
plot principal é narrado pelos personagens, formando um subplots, por
tanto, existem muitas histórias da mesma importância, que alimentam o
percurso do conflito do plot principal por tanto, o realizador não usou
apenas uma linha narrativa, mas histórias diversas que se desenrolam
simultaneamente para formar um todo. “A estrutura tem a ver com o
acontecimento” J.R. os personagens Massimo e Joaquim desencadeia
acontecimentos que fazem o plot principal, os restantes personagens
giram em torno desses dois personagens em função dos acontecimentos que
fazem o conflito principal.
“Já falei com Ana Deusqueira. Gravei tudo, conforme se combinou” p. 83
este passagem faz parte do plot principal e já alerta-nos a aproximação
de um subplot (a gravação), não temos essa parte textual no filme, como
não temos vários outros. Afinal, são dois textos diferentes escritos
pelos autores diferentes, como explicou o J.R:
“O filme O Último Voo de Flamingo é baseado no livro O Último Voo de
Flamingo, o livro é escrito pelo Mia Couto e o filme tem outro autor,
como tu também és um autor quando vês o filme. Cada um de nós é autor
quando vai interpretar uma obra, um dançarino é autor da música que o
outro compôs e o público que vai ver aquele bailarino também é autor.
Cada um de nós é autor do seu momento, por tanto, o livro não é um
filme, o filme não é um livro, se calhar aquilo que vi não é aquilo que
viste, essa é a beleza da arte: o facto de desenvolvermos todos um
processo criativo. Somos autores, nós. Então, não pode esperar ver o
livro que foi adaptado a um cinema, o livro ou comparar o livro ao
filme. São obras diferentes, são ideias diferentes, são formas de
contar diferentes e são opções diferentes. (…) Por exemplo, a minha
curta-metragem – uma pausa longa, vasculhando na memória – Tatana.
Tatana é baseado numa história que não existe. O Mia Couto contou me
uma história que ouviu de alguém no norte, e eu escrevi a minha versão…
são ideias que servem para desenvolver outras ideias. Tu não podes ir
ver uma obra com o preconceito da obra anterior.”
“Eu vi os pós, caindo como areia na cerveja. Vi tudo por inteiro.
Quando esse zambiano me pegou na mão eu já sabia o destino dele.” P.87
Esse subplot traz-nos mais dados para contribuir na construção do plot
principal, para além da descrição de cenário que o personagem faz, não
limitando se a ser um simples marionete manipulado pelo narrador do
plot principal. O trecho que demonstra o fim da gravação da Ana
Deusqueira marca o fim dum subplot que teve inicio, meio e fim, Apenas
citei o fim para não citar todos momentos da narrativa secundária.
“A literatura quer tornar o significante visual, enquanto que o cinema
quer tornar o visual significante” Robert Richardson. Este autor ainda
diz: a percepção de que a narrativa fílmica (não sendo linguística em
sentido estrito) não dispensa a palavra – assim como a narrativa
literária não vive sem a produção de imagens. Essa é a justificação
mais óbvia mesmo trazendo os casos dos filmes de Charles Chaplin que,
não tendo falas, o telespectador é obrigado a decifrar, através das
acções do protagonista, o que estaria dizendo ou comunicando. O Mr.
Bean é o exemplo mais ideal para esse tipo de textos fílmicos nos dias
de hoje. No caso de OUVDF, no
filme vimos a imagem de um pénis, no livro logo no primeiro paragrafo
“Nu e cru, eis o facto: apareceu um pénis decepado, em plena estrada
nacional” p. 17 por tanto, as palavras contem elementoS (sinais de
pontuação) que o texto escrito precisa obedecer para a melhor criação
da imagem que a concatenação das palavras e sinais de pontuação criam.
Um analfabeto teria dificuldades de decifrar a frase acima citada
(mesmo um leitor incompetente literariamente) mas não teria dificuldade
em reconhecer a imagem no filme, ou seja, enquanto no romance os
movimentos e eventos são construções imaginadas pelo leitor a partir de
palavras os movimentos no écran são idênticos aos movimentos da vida
real que eles imitam, que a passagem do tempo não pode ser separada
deles. O discurso fílmico em OUVDF não nos apresenta uma separação de
espaço e tempo, como acontece no romance, por isso o tempo do discurso
literário se desdobra, a fim de exprimir o espaço e o tempo “Deixáramos
a vila aquela noite. Risi ficou nos braços de temporina, no quarto da
pensão…” p. 207, o tempo do discurso cinematográfico tende a uma maior
coincidência com o tempo diegético, sendo mais semelhante ao tempo
real. O texto narrativo literário pode fazer parar o tempo (quando o
Mia Couto faz a técnica da intercalação entre os capítulos), ao
contrário do que acontece no texto narrativo fílmico, onde, o tempo
nunca pára porque o cinema não descreve, mostra. Enquanto o tempo
literário necessita de marcas que o definam (expressões temporais, como
por exemplo: ontem, hoje e amanhã) “No dia seguinte, fui chamado pelo
administrador.” P. 123, o tempo cinematográfico não necessita dessas
marcas (embora possa recorrer a elas, se o desejar), J.R explicou que,
no cinema, usam se truques para marcar a passagem de tempo: festas de
final de ano marcado pelos fogos de artificio, filhos que crescem,
feridas que saram depois de algum acidente ao longo da diegese as
passagens duma estacão para a outra. Só para dar um exemplo, no filme
em análise, temos uma mudança climática enquanto o Massimo e Joaquim
tomavam cerveja de baixo duma árvore e o italiano abandona dizendo:
“vou para pensão, pelo menos é mais tranquilo…”.
“Numa história tem que ter cronologia… há vários tempos: tempo da
história, tempo dos personagens… esses todos tempos fazem o tempo
narrativo” J.R. essa afirmação do realizador traz nos a estrutura geral
da diegese, pegando no personagem Massimo que chegando na vila para
resolver o problema das explosões marca o início, não só da sua
estrutura narrativa mas, da estrutura da diegese. Os problemas que este
vai tendo até o ponto de desistir, Joaquim convencendo a não desistir
marcam o desenvolvimento ou o meio estrutural deste personagem, o fim
da estrutura deste personagem é quando se converte: para além do
fardamento militar que vestia, vestia roupas de capulanas, por tanto
esta é a estrutura deste personagem, como os outros tem as suas, não é
por acaso que no livro dedica se um espaço para cada um contar a sua
história. Portanto, é em função do tempo da história que estes
personagens contam as suas histórias, tal como o tempo das personagens,
o tempo da história ao longo do percurso dos personagens uma vez que
estes são giram em torno do conflito: as explosões. As informações que
os personagens dum jeito subjectivo (a passagem que o Zeca Andorinha
diz ao Massimo “…e se tu estas a procura da resposta para a morte,
então não pergunta as pessoas, pergunta a vida”) que os personagens vão
lhe dando dados para a sua investigação, a interpretação que ultrapassa
as palavras que o Zeca Andorinha fazia complicava ainda mais o
italiano, e o conflito ficava cada vez mais distante do fim, por tanto
esses e outros eventos da investigação, marcam o meio ou o
desenvolvimento da narrativa. O fim é marcado com a fuga do
administrador Jonas após espancar a Ana Deusqueira e a prisão de
Chupanga enceram o conflito, os eventos que se seguem depois destes são
apenas últimas considerações ou a moral da história se o termo for
adequado. “As ideias inessenciais do livro são: o respeito pela terra,
respeito pelas pessoas, a herança de transmissão de conhecimento, o
seguimento de um ideal” J.R. essas são as informacoes que se seguem
depois do fim do conflito.
No discurso fílmico o espaço está sempre presente, mas no discurso
literário não. Alguns autores, como Bordwell (1985: 113) distinguem
três tipos de dados espaciais (constituintes do espaço cenográfico): o
espaço do plano, o espaço da montagem (em que o espectador tem a tarefa
de construir o espaço inter-planos com base em processos de antecipação
e de memória) e o espaço do som. No caso do filme OUVDF,
segundo J.R o filme em análise foi gravado em maracuene e as últimas
cenas, num laboratório da Inglaterra, incluindo a montagem, o som foi
montado em Portugal, este intercambio deve se ao facto de, para alem
dele tinham mais cinco co-produtores de diferentes países que para alem
de entrarem com dinheiro entraram com ideias). No romance os espaços
são descritos e explicados “Sentado num banco de curandeiro, o padre
Muando matabichava” p. 126 no filme são apresentados e encadeados: a
passagem da cena onde Joaquim é informado que o velho suplício está na
vila e o momento em que este vai o visitar lhe numa noite, não se sabe
se foi a mesma noite mas, sabe se que é um espaço e tempo diferente
daquele que este recebeu a noticia.
Na estrutura narrativa dos dois textos: literário e fílmico os planos
de discurso e da história encontram se tanto no filme como no romance
mas, de maneiras diferentes. O factor principal dessas diferenças
descritivas é pelo facto de o narrador fílmico ter sido silenciado, ou
seja, o papel de narrador-personagem, que o personagem Joaquim tinha na
narrativa de MC, passa para personagem, por tanto, em quanto no livro
temos o lado narrador e o lado personagem do Joaquim (Narrador
autodiegético) no filme só temos o seu lado personagem e o papel do
narrador no filme é desempenhado pela camera, o seu estatuto passou de
auto para heterodiegético (o sonho do Massimo fazendo sexo, é o exemplo
uma vez que este narrador entra no universo psicológico desse
personagem e nos descreve tal e qual estava sonhando), apesar de não
ter o domínio da narrativa no filme, Joaquim, é através dele que nos
somos facultados as declarações do seu pai (o personagem suplicio),
elemento fundamental para a construção dessa narrativa. Foi mais fácil
relacionar o personagem Joaquim com o narrador do livro uma vez que
esses dois têm o mesmo pai. Se João Ribeiro tivesse levado o narrador
de Mia Couto para o filme, seria a voz de Joaquim como
narrador-personagem a nos narrar os factos reforçando os que a imagem
através da camera ilustraria, a essa altura já era possível perceber
sem ver (as rádios, novelas são um bom exemplo), é o caso do filme
Memórias póstumas de Brás Cubas baseado no livro de Machado de Assis
onde o realizador levou o narrador de Machado de Assis para o filme. A
história narrada em forma de flash-back pelo personagem Zeca Andorinha
tem a mesma característica.
O narrador aplicado no filme é mais privilegiado que o do livro pois
este usa ou manipula todos personagens para nos dar uma parte do
conflito, Temos uma focalização interna quando o garroto e o Joaquim,
no filme contemplavam a temporina fazendo Massimo levitar, a interna
estamos contemplando em todos momentos do filme excepto quando os
personagens sonham e quando através dos seus olhos ou focos, vimos
imagens.
A barragem, espaço descrito no filme com a perseguição de Chupanga,
está perfeitamente detalhado, se calhar, mais do que a descrição que
temos no livro, deste modo, o discurso fílmico foi mais conciso e
descritivo na barragem. Outro fenómeno, dentre vários é que, no filme
as acções são acompanhadas por músicas que acompanha a densidade das
acções protagonizadas pelos personagens por exemplo o som que acompanha
a entrada do Massimo e Joaquim em quanto a Temporina fazia um rito para
uma autorização de entrada, combina com as lentas acções e dramáticas
que os personagens protagonizavam, por tanto o dado novo nessa
descrição de eventos é o som, a música que acompanha a acção. São
várias acções, minuciosamente descritas do filme que merecem alusão: a
descrição sexual entre Massimo e Temporina no sonho do Massimo (este
sonho remete nos a percepção real que é: esposa da noite). O segundo
cenário que aparece a Ana Deusqueira é bastante descritiva, esta actriz
age mais do que fale, “um minuto de cinema é uma página de guião” J.R
isso quer dizer que se eu descrevesse o cenário que passa essas imagens
encheria esta página, não que o cenário tenha um minuto mas, dado o
caso de uma descrição literária (complexa), diferente do guião ou o
roteiro (simples), um roteirista brasileiro: Marçal Aquino compara
guião de cinema com uma receita de bolo. “Foi então que, por trás dos
arbustos, me surpreendeu a visão de arrepiar a alma: meu pai retirava
do corpo os ossos e os pendurava nos ramos de uma árvore”. P. 215 A
descrição deste cenário exigiria do realizador ou do seu elenco,
instrumentos tecnológicos para a descrição dessas imagens no filme.
Conclusão
Feito o trabalho comparativo dos textos literários e fílmicos com o
mesmo título, constatamos que o realizador do filme, substituiu o
narrador do livro pela câmera, economizando o máximo tempo que pode,
pois, se o personagem Joaquim (narrador no livro) estivesse a contar no
filme, os 90 minutos que o filme era obrigado a cumprir seriam
insuficientes. A conversa com o cineasta João ribeiro foi muito
produtiva e permitiu omitir, no presente trabalho, assuntos que nenhum
outro pesquisador ou crítico, que não tendo tido uma conversa com ele,
escreveu sobre o mesmo assunto.
3 Comments:
-
- Unknown said...
29 de fevereiro de 2016 às 06:58Hehehehe...vou ler 20 vezes. Parabéns....- Unknown said...
29 de fevereiro de 2016 às 06:58Hehehehe...vou ler 20 vezes. Parabéns....- literatura sem fronteira said...
2 de março de 2016 às 00:47obrigado aí Lony.
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